quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Carta de Recomendação

Qual é a coisa qual é ela… Que pesa 1tl nos ombros, 4gr no papel e tem uma bola de borracha na garganta?


Anexei-a e lacrei. Hoje era o ultimo dia do prazo da candidatura à bolsa de Investigadora. Não é a primeira carta de recomendação que me escrevem… nem mesmo a de mais alta patente académica. Mas confesso que é a que mais queria ter. Única e exclusivamente para saber o que pensa aquele médico, sportinguista crónico, que quase podia ser meu avô, de mim.


Foi a pessoa mais exigente que conheci na minha vida. Era exigente com o programa, com os alunos, sobretudo com o seu tempo. Não tinha paciência para ignorância e não suportava burrice. Tinha um sentido de humor cáustico e falava sem embaraços de tudo. Tudo mesmo. Era, é… uma lenda pela sua inflexibilidade, rispidez, sobranceria. Era, é… uma lenda pelo elevado numero de chumbos. Era, é… uma lenda por se estar pouco lixando por ser ou deixar de ser uma lenda por estes ou outros motivos.


É por tudo isto que ainda hoje é a pessoa mais inteligente e exigente que conheço, sobretudo com o seu tempo. Nunca gastou uma molécula de ATP ou um segundo que fosse a pensar o que os alunos pensam dele, se são muitos ou poucos os chumbos, se um 9.445 não podia ser positiva, se os alunos são altos, baixos, gordos, magros, gajos ou gajas. Na verdade dentro do auditório ele sempre se esteve marimbando para tudo. Para tudo menos para vontade, inteligência, conhecimento e rigor.


Fui aluna dele durante dois anos completos. Odiei-o durante boa parte do primeiro. Era no meu primeiro ano de universidade uma miúda que achava que ele representava tudo aquilo que eu jamais queria ser enquanto pessoa, enquanto professora. Hoje sonho em chegar aos calcanhares da pessoa que ele é. E de luz acesa em frente ao espelho, encontro em mim alguns dos seus melhores e piores traços enquanto professor.


Das parcas qualidades que ele reconhecia aos alunos, vontade, inteligência, conhecimento e rigor, reconheço, manifesta só tinha primeira. E foi assim que nos defrontamos. Lembro-me de ficar de mão aberta e braço no ar mais de 20 minutos. Lembro-me também que quando, anos depois, me sentei na cadeira de professor no auditório percebi que aquele era o posto de DEUS. Posto de deus pela sensação de omnipresença. Daquele palco tinha-se a visão de tudo. Tive a certeza que um braço no ar, ainda que no meio daquela arcada de cem lugares, seria impossível não ver, seria impossível ignorar.


Hoje, essa pessoa que um dia… me obrigou a esperar vinte minutos de braço no ar, até admitir que a persistência/vontade eram meritórias de interromper o seu monólogo com uma pergunta. Que anos mais tarde parava a aula e dizia: Já vi essa sobrancelha a levantar, diga lá menina Shadow, o que não está a perceber? Que depois de eu ter sido das poucas a ter positiva ao cadeirão daquele semestre, diz que eu merecia dois pares de estalos e revelava ter ficado profundamente desiludido com a minha nota. Que quando tirei a melhor nota dos últimos anos à sua última cadeira não expressou qualquer sinal ou gesto felicitação. Que no meu último ano, antes de eu entrar para a defesa da tese me encontra no corredor e diz que tem pena de não assistir, ri-se e vira costas dizendo “vinte.” Que quando preocupada lhe contava que me tinham convidado para ficar na Universidade me acusou, sorrindo, de falsa modéstia. Que com tantos insultos e sorrisos me brindou ao longo de todo o meu percurso académico.


Essa pessoa, a tal inflexível, ríspida, altiva, escreveu-me uma carta de recomendação da forma mais familiar que alguma vez li. E se me surpreendeu a forma como enumerou as três qualidades que em verdade reconheço como as que melhor descrevem a pessoa que sempre fui e às quais dou mais valor. Deixou-me uma bola na garganta ao terminar dizendo que me antevê uma carreira académica brilhante e que nada enquanto meu ex-professor lhe daria maior satisfação.


Qual é a coisa qual é ela… Que pesa 1tl nos ombros, 4gr no papel e tem uma bola de borracha na garganta? Quem respondeu carta de recomendação do ex-professor dos cadeirões do curso acertou.

4 comentários:

teia d'aranha disse...

O teu post dá-me razão. Fico sempre "desconfiada" quando me surge alguém que é logo todo sorrisos e simpatias e querida para aqui e para acolá... Mas isso sou eu... que sou intragável e mete-nojo todos os dias, inclusive feriados.

Desejo-te tudo de bom para esta nova etapa da tua vida profissional.

Desculpa, mas hoje envio-te um beijo em vez do tradicional "vai pó caralhinho!".

Shadow disse...

Hoje... hoje, Obrigado! É isso mesmo. Hoje apesar de não saberes porquê, obrigado.

um beijo

Anaísa disse...

Apeteceu-m responder a este post por ser o primeiro a contar findo do fim com um titulo em portugues...lol
Vá e tb porque pronto tinha de comentar algum...
Dizem que no fim qd um trabalho é bem feito teremos uma reconpensa À altura, e tu terás várias...
bjinhos

Shadow disse...

Isa, minha linda, quero mesmo acreditar nisso. Até porque se assim for sei que a vida não terá se não sorrisos para ti!

beijo grande *sp*